03°
Capítulo – “Fique!”
Ainda não havia amanhecido quando Thomas desceu as escadas com sua mala em mãos.
Os degraus rangiam sob o peso de seus passos cuidados, e o som do vento lá fora parecia mais alto do que nunca. Olhou pela fresta da janela e a neve voltara cair ainda mais forte. Tentou não fazer nenhum barulho, pois a casa estava mergulhada no frio e no silêncio desde o desentendimento de Thomas e Taylor na última noite.
Mas Taylor estava acordada, passara a noite em claro e com a consciência pesada e o peito apertado, pois o arrependimento foi instantâneo e, ao deitar-se na cama, percebera que seu ato fora absurdo e lhe tirava qualquer razão. O olhar de Thomas, baixo e decepcionado, não saia de sua mente, não havia algum tipo de desculpa que ela poderia dar para justificar sua atitude, ela estava em busca de provas para acusá-lo de algo que ela sequer sabe. E, para piorar, o que encontrou, não entendeu o que lera.
Do piso de baixo, ela ouviu o
telefone fixo sendo discado – o giro era alto o suficiente para que Taylor
percebesse que alguém utilizava a linha telefônica. Ela saiu do quarto e
encostou na soleira do corredor. Thomas tentava falar baixo, mas o silêncio da
casa amplificava cada palavra.
— Emma... sou eu... — ele disse, a
voz parecia rouca. — Sim, estou bem sim. Ainda estou na fazenda, mas não deu
certo... — ele pausou. — É mais complicado, o Scott faleceu no começo do ano e
quem está no comando da fazenda é a filha dele...
Um breve silêncio.
— Ela não confia em mim. O Scott
nunca falou de mim para ela, então, eu sou um completo desconhecido e... eu fiz
o que pude, não existe mais razão para ficar aqui.
Thomas suspirou e deu uma risada.
— Acho que não consigo voltar para
o natal, mas tentarei ir para o hotel até conseguir voltar para Londres. A
tempestade não cessa por aqui... — ele pausou. — Diga à Marianne que o presente
dela está no meu apartamento e que o tio dela lamenta muito não estar com vocês
no natal. Diga que eu prometo compensá-la.
Um breve silêncio.
— Está tudo bem sim... sim, estou
bem... — ele rira. — Eu estou bem, Emma. Só liguei porque queria ouvir a voz de
alguém familiar. Se eu não ligar no natal, saibam que pensarei em vocês. — pausou
novamente. — Amo vocês. Até mais.
Taylor recuou um passo, o coração
batendo forte. A culpa a invadiu de maneira quase física. Fechou os olhos e
balançou a cabeça negativamente. O arrependimento tomou-a de jeito. Não era só
por tê-lo julgado — era por ter percebido que, talvez, houvesse verdade naquilo
que ele dissera no dia anterior. Que Thomas, de algum modo, também carregava
perdas.
Quando o telefone foi recolocado no
gancho, ela voltou às pressas para o quarto, fingindo dormir. Deitou-se na cama
e fechou os olhos, fingindo dormir – fingia para si mesma que se dormisse,
talvez os problemas não existiriam. E, se sonhasse, seus erros seriam
perdoados.
Passou-se algumas horas e seu despertador
tocou – sinalizando o horário do primeiro remédio de sua mãe. Ela se levantou e
fez sua higiene matinal, colocou uma roupa mais grossa e vestiu logo cedo suas
botas – sabia que seriam uteis nas próximas horas.
Foi até o quarto de sua mãe e
Andrea já estava acordada, sorriu quando viu a filha e sentou-se na cama. Pegou
dois comprimidos que Taylor lhe entregou e tomou com a garrinha de água que
ficava ao lado de sua cama.
— Como se sente, mamãe?
— Oh, não muito bem... minha cabeça
está doendo e... sinto uma tontura quando olho para os lados. — respondeu,
lamentando. — Veja, meus pés também estão inchados.
Taylor descobriu os pés da mãe e
concordou.
— Quer que eu traga seu café da
manhã aqui? Preparo um especial para tomar na cama.
— Se isso não te incomodar. —
Andrea respondeu, sorrindo. — Sei que tem bastante coisa para fazer hoje, nossa
árvore é uma delas... — piscou.
— Não será incomodo algum, volto
já. — levantou-se. — e se precisar, só me chamar.
Andrea beijou a mão da filha, havia
gratidão em seu olhar – e orgulho. Taylor saiu do quarto e sua mãe e fechou as
escadas, caminhava na própria casa em passos lentos e silenciosos. No topo da
escada, respirou fundo e tomou coragem para descer porque saberia que
enfrentaria Thomas.
Ao descer as escadas, a mesa estava
parcialmente posta e o cheiro do café recém passado enchia o piso inferior da
casa. A mala de Thomas estava localizada ao lado da porta e ele já vestia o
mesmo caso do primeiro dia em que chegou à fazenda; ele estava sentado na mesa
com uma caderneta e um mapa ao lado – parecia bem concentrado.
— Vai a algum lugar? — Taylor
questionou, tentando manter a voz e postura firme.
Ele ergueu o olhar – parecia cansado,
mas ainda tinha uma expressão gentil.
— Acho que falamos na noite
passada... — ele respondeu. — eu sei que já te causei incomodo e exaustão
demais.
— Nunca verbalizei isso! — retrucou
firme.
— Taylor, eu não quero brigar com
você. Nunca quis. — ele se levantou. — Sei que as coisas entre nós não serão diferentes
disso.
— Foi por causa de ontem? Apenas diga
a verdade!
— Parte disso, talvez. — ele
respondeu olhando-a. — Mas também é porque eu já cumpri o que vim fazer aqui,
você já sabe da verdade e das coisas que acontecerão em breve...
Ela abaixou o olhar, apertando as
mãos.
— Foi errado o que eu fiz. Não
deveria ter mexido nas suas coisas.
— Tudo bem... — ele respondeu
sereno. — Acontece...
— Não acontece, não comigo. — ela
corrigiu-o. — Eu não sou assim, Thomas.
Ela suspirou.
— A neve engrossou novamente, sair
daqui será difícil e terá sorte se conseguir chegar em algum lugar... — Taylor
dizia, mas Thomas interrompeu-o.
— Mas isso não é um problema seu.
No primeiro dia, você me fez a gentileza de me deixar ficar e me ouvir. Agora
já passou da hora de ir embora, você e sua mãe merecem ter a privacidade de
vocês de volta. — Thomas entregou-a aquela pasta. — Aqui está tudo que você viu
na noite passada, eu iria te entregar quando você me desse qualquer resposta...
era sim ou não... — ele riu. — mas é tudo que tenho daqui e você entrega para
seu advogado de confiança. Tudo que eu te contei estará aí e esse é meu
telefone de Londres, peça para o advogado me ligar e, se tudo der certo, a gente
resolve tudo até o próximo ano.
Ele entregou um cartão com seu nome
e um número telefônico escrito a mão. Taylor pegou a pasta e sentiu um aperto
forte no peito.
— E eu sei seu telefone mais cedo. —
ele disse quase que sem jeito. — Para falar com minha irmã porque já fazia alguns
dias...
— Não precisa se justificar.
— E eu também peguei esse mapa que
era do seu pai, estava na gaveta da escrivaninha dele... Não vou levar comigo,
só estava fazendo o trajeto até o centro da cidade. Lá tem um hotel e é mais
próximo da estrada para Chicago.
O som da lenha estalando na lareira
preencheu o vazio que ficou entre as palavras.
Por um momento, Taylor achou que
ele realmente fosse abrir a porta e desaparecer no branco da neve.
— Bom, eu irei no horário do
almoço. Acredito que a neve cessara perto do meio-dia e vou aproveitar esse
tempo para colocar em ordem o celeiro que deixei bagunçado ontem. — ele sorriu.
— E irei levar para terminar o trajeto. Volto para me despedir da sua mãe e te
avisar que irei.
Ela deu um passo à frente,
instintivamente.
— Thomas… espere.
Ele parou, a mão na maçaneta.
— Sim?
Taylor sentiu o rosto arder, as
palavras se embaralharem na garganta.
— Nada, esquece... — ela forçou um
sorriso. — Irei dar uma olhada nisso aqui e... aviso minha mãe sobre a sua
decisão.
Thomas assentiu, vestiu suas luvas
e pegou a caderneta de capa dura preta, dobrou o mapa e saiu da casa. Taylor
foi até a janela e observou-o entrar no celeiro. Ela coçou o cenho e preparou o
café de sua mãe, enquanto planejava a maneira que contaria à ela o que
aconteceu na noite anterior.
Subiu as escadas e abriu a porta do
quarto de sua mãe. Andrea perguntou:
— Thomas já se levantou?
— Sim, ele já foi para o celeiro...
diz que está arrumando algumas coisas. — Taylor respondeu. — E ele partirá nessa
tarde.
— Já? Com a neve dessa forma? É
perigoso para ele. — Andrea ficou surpresa. — Traga ele aqui para que eu
converse...
— Mãe, ele está decidido a ir. —
Taylor interrompeu-a. — Ele tem a família dele, amigos, trabalho... a vida
dele. Não tem razão para ficar preso no interior dessa forma.
— O que quer dizer? Ele disse algo?
— Não precisa, mamãe. É meio obvio.
Pelo menos, para mim, é meio óbvio. — Taylor murmurou, sem jeito. — Nós somos
um projeto de caridade para ele.
— Taylor...
— É verdade. Ele doa remédios para
senhora todo mês há uns dois anos, ajudou o papai com dinheiro e depois comprou
a fazenda dizendo querer devolver sem nada em troca. — ela respirou fundo. —
Tem uns documentos que li na noite passada, ele comprou nossa casa por 240 mil
dólares... — contou chocada. — É muito dinheiro e ele ainda diz querer se casar
comigo para me devolver a fazenda sem que nós precisemos pagar nada dessa
quantia.
A mãe ficou em silêncio e não
esboçou nenhuma reação. Olhou para a filha e questionou:
— Que documentos são esses?
— Que vi na mala dele. E ele já
sabe, ele viu quando olhei nas coisas dele. — Taylor respondeu sem graça. — Não
preciso de sermão para saber que agi errado, mas ele não me dizia nada e, hoje,
entregou-me esses documentos dizendo que é bom procurarmos um advogado para que
possamos resolver isso. Como iremos resolver isso na justiça?
— 240 mil dólares é muito
dinheiro... — Andrea refletia.
— Fora os remédios, o dinheiro que
deu para papai pagar parte do empréstimo. — Taylor respirou fundo. — Ele deve
partir mesmo, aqui não é lugar para um homem como ele.
— Não deveria ser ele a decidir
isso?
— Ouvi ele no telefone nesta noite,
ligou de madrugada para a irmã. Ele sente falta da família dele e está aqui...
não sei, disse que queria resolver, mas o papai não está aqui para aceitar as
propostas que ele ofertaria. E para mim, aceitou uma proposta de casamento fraudulento
em que eu serei a parte que não tem nada a oferecer... — riu. — e é patético pensar
que é só nesses casos para isso me acontecer... não é certo.
— Como te disse antes e vou a repetir,
você não é obrigada a fazer nada que não queira.
— E querer algo que pareça errado?
— Taylor indagou, pensativa.
— Como assim, Tay? O que você quer
que seja errado?
— Não... não é nada. — Taylor
sorriu. — É mais besteira minha do que qualquer coisa.
Elas ficaram ali fazendo companhia
uma para a outra, ora conversam, ora ficavam em silêncio – até Taylor perceber
que sua mãe cochilou. Era um dos efeitos dos remédios, sua mãe dormia bastante e
ela se sentia sozinha ali nesses momentos.
A neve havia parado quando Taylor
tomou a decisão de atravessar o quintal e ir até o celeiro. O ar frio cortava
suas bochechas, mas a sensação interna era ainda pior. O arrependimento pesava
nos ombros como algo físico. Não importava o que dissesse a si mesma — que
Thomas era um desconhecido, que o pai deveria tê-la avisado, que ela só queria
proteger o que restava, mas nada justificava o que ela fizera na noite
anterior.
O celeiro estava com a porta
semiaberta. Um fio de luz escapava pela fresta, iluminando a neve acumulada.
Taylor empurrou a porta devagar e encontrou Thomas de costas, empilhando caixas
num canto, reorganizando ferramentas como se tivesse passado horas ali.
Ele não percebeu sua entrada de
imediato.
Havia um peso diferente em seus
movimentos… um cansaço no modo como ele respirava.
Ela limpou a garganta.
— Thomas?
Ele parou. O silêncio entre eles
parecia mais gelado que o ar lá fora. Thomas se virou, com uma ferramenta na
mão e o cenho franzido — não de raiva, mas de cautela. Parecia ter preparado
uma distância invisível entre eles.
— Taylor… precisa de algo? —
perguntou sem aproximar-se.
A pergunta doeu nela.
Taylor cruzou os braços, não como
defesa, mas como tentativa de impedir que suas mãos tremessem.
— Eu queria conversar.
Os olhos dele se abaixaram para a
ferramenta que segurava. Ele respirou fundo e a colocou sobre a bancada.
— Se for sobre a pasta, já deixei
com você. Não precisa me devolver.
Ela deu um passo à frente.
— Não é sobre a pasta. — sua voz
saiu mais fraca do que esperava. — É sobre ontem. É sobre tudo que está
acontecendo.
Thomas inclinou a cabeça,
esperando.
Taylor continuou:
— Eu devo desculpas.
Ele pareceu surpreso — um lampejo
rápido que ele tentou esconder.
— Você não precisa… — murmurou.
— Preciso, sim. — ela o
interrompeu. — O que fiz foi errado. Eu mexi nas suas coisas, procurei por
algo… que eu nem sabia o quê. E não havia nada que justificasse isso. Nada.
— Você tem razões para desconfiar
de mim. — ele respondeu, olhando para o chão. — Scott… nunca te contou sobre
mim. Eu apareci aqui com uma proposta absurda e documentos em mãos. Se eu
estivesse no seu lugar, talvez agisse igual.
— Não agiria. — ela sussurrou. —
Mas obrigada por tentar me deixar menos horrível.
Ele abriu um sorriso — pequeno, mas
genuíno, e algo dentro dela se soltou, como um nó desfazendo.
— Escute… — Taylor continuou,
respirando fundo. — a tempestade ainda não cessou completamente. A estrada pode
estar difícil de dirigir. E… — sua voz falhou, e ela teve que insistir no fim
da frase. — e eu gostaria que você ficasse. Pelo menos por mais alguns dias.
Ele ergueu o olhar devagar, como se
não acreditasse que ouvira direito.
— Gostaria… que eu ficasse? —
repetiu, em tom baixo.
— Sim. — ela respondeu, mais rápido
do que pretendia. — Não acho certo você se arriscar nesse tempo. E eu… não
quero que você vá assim. Não enquanto estamos… — ela procurou a palavra certa,
com a garganta apertada. — …não enquanto estamos tão mal resolvidos.
Thomas deu dois passos em direção a
ela.
Taylor sentiu claramente: o ar
ficou mais estreito. A temperatura mudou. Era como se ele tivesse aproximado
todo o calor que faltava naquele dia.
— Taylor… — ele começou com voz
baixa. — Eu não quero ser um peso para você e sua mãe. E… depois do que
aconteceu…
— Você não é um peso. — ela o
interrompeu, e dessa vez se aproximou. — Eu fiz você se sentir assim, mas… não
é verdade.
Ele hesitou. Depois, muito
lentamente, como se temesse um recuo dela, tocou seu braço — um toque leve,
quente, que percorreu a pele sob o casaco como um choque.
Taylor sentiu o coração disparar.
Ele também percebeu. Porque seus
olhos, ao encontrarem os dela, acenderam de um modo que ela não tinha visto
antes — como se algo preso entre eles finalmente tivesse espaço para respirar.
O toque durou tempo demais para ser
acidental, mas curto demais para satisfazer qualquer um dos dois.
Thomas afastou a mão, inquieto.
— Se… se você realmente quer que eu
fique, então eu fico. — disse num sussurro, quase rendido.
O ar no celeiro pareceu segurar o
fôlego. Taylor deu um passo à frente e respondeu:
— Quero.
[CONTINUA]

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