Despertou
em um único impulso e levou a mão esquerda ao peito e certificou o que já
esperava: seu coração estava acelerado, a nuca e couro cabelo suados, e suas
mãos tremulas. Contou até vinte, dobrou a contagem até quarenta e aos poucos
voltou a controlar sua respiração e logo seu coração acalmou.
Olhou
para a janela e ainda estava escuro, certificou do horário e ainda era duas
horas da manhã, mas naquele momento já tinha perdido o sono. Levantou-se da
cama e foi até a cozinha, seus passos eram ágeis, mas silenciosos. Abriu a
geladeira e pegou a garrafa de água gelada e serviu para si mesma em um copo de
meio litro. Tomou todo o líquido de uma única vez e limpou a boca, fechou os
olhos e respirou fundo contando até vinte outra vez.
Os
pesadelos melhoraram muito durante os anos, vinham em lapsos e se misturavam
com outros tipos de sonhos, até nos mais felizes. Algumas vezes, o ponto de
vista era dela mesmo, outras vezes ela se observava naquela situação, mas para
se lembrar era sempre mais difícil, pois sabia que tinha um bloqueio emocional
muito intenso sobre aquela noite, mas nas últimas semanas essas memórias
se intensificaram ainda mais e, apesar de saber que é uma memória ou “só um
sonho”, ela ainda consegue sentir cada momento.
Independentemente
de como começa, sempre termina como choros silenciosos de uma criança que
sentia muita dor, mas não tinha coragem de gritar porque sabia que não poderia
gritar. Aquelas mãos grandes, com dedos grossos – e no dedo anelar uma aliança
dourada brilhante e no dedo indicador um anel preto fusco com um desenho de
sapatilha de ponta prateado, apertava seu corpo e rugia sons selvagens. Seus
olhos estavam sempre fechados, ele pediu para manter os olhos fechados e como
tinha disciplina, manteve os olhos fechados e em lágrimas. E é antes de abrir
os olhos que o sonho é interrompido e ela acordava dessa forma.
Apesar
do rosto não ser visível, ela sabe muito bem quem é.
Lavou
o copo que utilizou, colocou no escorredor de louça suspenso e voltou para seu
quarto, sentou-se na cama e fez uma breve oração como sua mãe lhe ensinou para
quando esses pesadelos voltassem, e eles sempre voltam. Deitou-se e cobriu todo
seu corpo até os ombros, fechou os olhos e fez o exercício que sua terapeuta
ensinou de pensar em coisas que mais acha bela no mundo: o céu no dia
ensolarado, tulipas, felinos enquanto são filhotes...
Adormeceu.
O
despertador tocou às oito horas em ponto e, dessa vez, já tinha amanhecido com
o céu parcialmente nublado como era comum no outono londrino. Levantou-se sem
pressa, ligou sua caixa de som e colocou na sua playlist favorita que iniciou
com a canção Dreams, de Fleetwood Mac, cantarolando junto à melodia. Na
cozinha, começou o preparo do café da manhã: uma xícara de café preto e puro,
pão com ovos fritos e metade de um mamão papaia. Sentou-se sozinha na mesa
central e comeu a refeição em completo silêncio.
Abriu
sua agenda que era totalmente organizada e verificou o único compromisso
importante de seu dia que era a entrevista de emprego no horário do almoço,
fora isso, seu dia seguiria padrão como todos os outros.
Após
o café da manhã, tomou um banho quente e colocou sua roupa de malha para fazer
sua corrida matinal, já conseguia correr 13km até Borough Market, onde comprava
diariamente frutas e verduras frescas, depois passava em uma das lojas mais
populares do bairro – que comercializava os melhores pratos feitos em grill da
cidade. Não porque comia todos os dias ali, mas sua melhor amiga, Selena Gomez,
trabalhava lá.
— Oh,
Taylor! — alegrou-se. — Estou ficando muito mal-acostumada com suas visitas por
aqui. — Selena disse ao vê-la.
— Se
tudo der certo, hoje será meu último dia desempregada. — sorriu. — Tenho aquela
entrevista mais tarde.
—
Ainda não entendo a razão de ter saído do último, você adorava aquele
menininho. E eu também!
—
Era o melhor a se fazer. — respondeu. — Ele poderia se apegar demais e eu tenho
outros planos.
—
Você só fala desse plano. Qual seria o plano? — Selena perguntou. — Você ainda
continuará estudando, não é? E ainda será babá?
—
Irei te contar tudo no momento certo e se tudo der certo hoje. — respondeu
tranquila. — E agora poderei fazer meus próprios horários, exigir antes que
fique muito sobrecarregada.
Abriu
um sorriso, mas suspirou ao saber que aquilo não era toda a verdade. E mentir
para a sua melhor amiga partia seu coração, mas sabia que era um mal necessário
– ao menos, por um curto período.
Cumprimentou
outros funcionários do local que já era bons conhecidos seus e despediu-se ao
olhar o horário e ser quase onze da manhã. Tinha que se arrumar, pois em menos
de duas horas teria que se encontrar com seu futuro empregador.
Despediu-se
de sua amiga, pegou suas duas sacolas de pano com os itens que comprara mais
cedo e voltou para casa caminhando. Ao chegar, guardou algumas frutas na
fruteira e as verduras e legumes na geladeira. Tomou outro banho e vestiu a
roupa que separou na noite anterior, colocou as lentes de contato de cores azuis,
passou uma maquiagem de leve e penteou seu cabelo em um rabo-de-cavalo,
ajustando bem sua franja na testa.
Saiu
de casa e foi caminhando até a estação de metrô que a levou próximo à estação
de Hyde Park, no restaurante italiano superfaturado Osteria Romana – era um
lugar bem mais turístico e movimentado, no restaurante tinha uma extensa fila
para reservar mesa. Taylor passou a mão no seu casaco e se olhou pelo reflexo
de um vidro pensando se era a roupa correta para a situação em que estava. O
lugar era muito sofisticado para ela, mesmo que já vivesse as sombras desse
meio social há algum tempo.
Aproximou-se
da entrada e o recepcionista olhou-a e adiantou:
— A
fila de espera para ser atendido está demorando em torno de três horas.
— Acredito
que já tenha reserva no nome de Katheryn Hudson-Mayer, ela está me esperando.
Pediu
para aguardar, pois iria verificar a informação. Depois da chegada de Taylor,
tinha cerca de mais catorze pessoas – todos querendo provar do melhor que
Londres pode ofertar. Após alguns minutos, o recepcionista voltou e autorizou a
entrada de Taylor e a conduziu até uma mesa no segundo andar que tinha como
vista o belo Hyde Park nos seus dias de outono, as folhas douradas, laranjas
com alguns tons avermelhados cobriam as arvores e o chão do parque, criando um
cenário pitoresco e sereno.
— É
lindo a vista daqui de cima, não é? — comentou. — Um prazer de conhecer,
Taylor.
Desviou
sua atenção da paisagem que arrancara por alguns minutos sua admiração e olhou para
mulher que falava com ela, sorriu e olhou-a com atenção. Era mais velha, já tinha
seus quarenta e poucos anos, mas ainda muito bonita e em forma. Cabelos negros
e cumpridos por extensões muito bem-feita, a pele era como de pêssego, mas também
era possível notar alguns traços de botox próximo à boca, nos olhos e na testa,
os dentes também tinham lente de contato. Seus olhos eram azuis escuros, os lábios
levemente carnudos com batom vermelho e vestia um vestido justo ao corpo off white
digno da melhor alfaiataria inglesa. Em resumo, era perceptível que Taylor
estava diante à uma verdadeira inglesa da elite de Londres.
Sentou-se
de frente à ela e já tinha sido servido uma entrada: Carpaccio di Tonno.
Taylor olhou para o prato e sorriu de maneira amigável, mas não importa o nome
dado ao prato e o quão fino e caro que seja, ela detestava atum. E naquele
momento, ela sentiu que era um sinal para abandonar todo seu plano e ir embora,
aquilo não era para ela. Porém, ela já tinha ido longe demais e não desistiria
por conta de algo que a enojasse.
Deu
a primeira colherada e em seguida tomou um gole de vinho branco de um nome
italiano que ela jamais lembraria ao sair dali. Resistiu ao teste, ela iria até
o final.
—
Confesso que pensei que você não retornaria! — Katheryn comentou. — Mas depois
que soube que você parou de trabalhar para os Evans, devo dizer que tive que
tentar.
—
Bom, ainda gosto muito dos Evans. — frisou Taylor. — São boas pessoas.
—
Claro que são, Maite é uma grande amiga minha, fazemos ioga juntas e foi quando
ela comentou que você pediu demissão. — dizia Katheryn. — Pelos horários com o
pequeno Bryan, tornou compatível para você.
—
Sim, é verdade. — sorriu. — Vejo que a senhora se informou sobre tudo.
—
Pode ter certeza que sim. — afirmou. — Eu sei que além dos Evans, trabalhou
para a famila Wright, Morris e Clarke. E também para os Cavendish, sobre eles
fiquei muito surpresa, mas entrei em contato e só tinham elogios sobre você, fizeram
indicações que li e fiquei bastante admirada.
—
Obrigada, sra. Hudson. — Taylor respondeu. — Você responde como Hudson ou Mayer?
Ainda tenho essa dúvida, não quero falar errado...
—
Oh, Hudson é o nome da minha família, mesmo casada, ainda mantenho porque faço negócios
na área da moda e isso é importante. Já Mayer é do meu marido, se aceitar trabalhar
conosco, irá conhecê-lo. — riu. — Enfim, eu respondo pelos dois, mas ele gosta
mais quando se referem a mim como sra. Mayer.
—
Certo, sra. Mayer. Assim será. — Taylor sorriu. — Eu li o seu e-mail e vocês
tem somente uma filha de oito anos, Rachel. Quando eu penso em crianças, na
minha posição como babá, gostaria de saber do que vocês procuram?!
— Quero
uma pessoa responsável, doce e confiável para acompanhar minha família em toda
sua rotina e nas nossas dinâmicas familiares. Ela já teve outras babás, não sou
reclamar porque eram boas pessoas, mas eu quero alguém que possa inspirá-la
também, que acompanhe como alguém que queira seu crescimento. Ir além das
obrigações, mas assumir um papel na nossa família.
—
Entendo...
— E
eu sei que você faz isso. Você fez isso pelo Bryan... tadinho... soube que ele
está triste com a sua partida. — disse com uma voz infantilizada. — Mas eu
estou disposta ao seu horário e disponibilidade dentro do que podemos negociar.
E eu perguntei à Maite quanto pagavam, oferecemos 20% de aumento.
—
Nossa... — Taylor respondeu surpresa. — Eu... eu estou... não sabia que eu era
tão...
—
Requisitada? — Katheryn bebeu mais um gole de seu vinho. — Bom, existem babás a
rodo e a torto, como dizem por aí, seja mulheres novas ou velhas, desempregadas,
estrangeiras... Há muitas pessoas dispostas, mas para famílias como as que você
já trabalhou, como a minha... não queremos nossos filhos com qualquer pessoa.
—
Sra. Mayer, eu bem sei que existe uma lista. E também sei que estou nela, mas também
sei que existem outras...
—
Não quero colocar pressão! Mas saiba que você é o perfil que procuro, pense
nisso.
— É
claro que pensarei. Na verdade, já pensei... — ambas riram. — É tão tentador
sua proposta que quero aceitar.
—
Ótimo! — Katheryn celebrou. — E veja, meu marido chegou para conhecê-lo, falei
para ele chegar na hora, mas disse que se atrasaria um pouco. Nem queria vir,
mas eu disse que no seu e-mail era importante a presença dos pais... e ele
veio!
Katheryn
levantou a mão esquerda e acenou, Taylor manteve-se ereta e sentiu uma presença
se aproximando, apoiou a mão na sua cadeira e seu corpo arrepiou-se por
inteiro.
—
Falei que viria, meu amor. — uma voz masculina falou, de maneira simpática.
—
Deixe-me apresentar a nossa babá, que acompanhara Rachel. — Katheryn disse. —
Seu nome é Taylor; Taylor este é meu marido John Mayer.
Ele
estendeu a mão para Taylor, dizendo “prazer em conhecê-la” com um sotaque
americano do sul inconfundível. Taylor expeliu o toque, mas cumprimentou a
força.
Ao apertar
sua mão, Taylor viu no dedo anelar uma aliança dourada brilhante e no dedo
indicador um anel preto fusco com um desenho de sapatilha de ponta prateado.
[CONTINUA]
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