A rotina dos Mayer começava antes
mesmo de Taylor cruzar os portões da propriedade.
Jason, o motorista, era sempre o
primeiro a aparecer: impecável em seu terno escuro, pontual ao ponto de ser
previsível, guiando Rachel entre o colégio, o balé e as incontáveis atividades
extracurriculares que sua mãe acreditava serem indispensáveis para formar a
filha perfeita. Nos intervalos, Jason também se tornava sombra e escolta de
Katheryn, acompanhava-a a almoços, eventos beneficentes, galerias de arte e
pequenos circuitos culturais que ela percorria como quem cumpre uma obrigação
social. Os finais de semana, para ele, raramente ofereciam descanso.
John, por outro lado, recusava
qualquer tipo de motorista. Fazia questão de dirigir seu Aston Martin DBS preto,
que parecia rugir cada vez que avançava pelos bairros de Londres. Taylor o
interpretava como um gesto de orgulho — quase um troféu ambulante, uma forma de
provar, diariamente, onde seu sucesso havia o conduzido.
A casa, porém, tinha vida própria que era
sustentada por pessoas que orbitavam discretamente em torno da família.
Amira e Salma, as cozinheiras, eram
imigrantes de Omã que já trabalhavam para os Mayer há sete anos. Eram
habilidosas, eficientes, e nutriam por Rachel um carinho tão genuíno que
contrastava com os comentários ácidos que trocavam em árabe sobre o casal
sempre que tinham a oportunidade.
A faxineira, Sabrina, era praticamente
o oposto da rigidez silenciosa das duas. Jovem, risonha, cantarolava músicas populares
enquanto aspirava os tapetes persas, e frequentemente recebia reprimendas duras
de Katheryn — que ela sempre ignorava com um sorriso cansado e um aceno de mão.
E havia ainda Juan Rosado, o
jardineiro, latino, vinte e poucos anos, com problemas imigratórios que o
deixavam sempre alerta. Trabalhava com devoção, quase com gratidão silenciosa,
especialmente para John, a quem tratava com uma lealdade visível. Só aparecia
às quartas-feiras ou em vésperas de eventos importantes, quando os jardins da
família precisavam parecer tão perfeitos quanto seus anfitriões.
— O que está fazendo? — Katheryn
perguntou, inclinando-se para espiar a caderneta aberta nas mãos de Taylor.
— Só algumas anotações iniciais —
respondeu a jovem, fechando suavemente o caderno. — Gosto de registrar nomes,
horários e rotinas. Ajuda a não cometer erros.
Katheryn sorriu como quem aprova, mas
sem realmente se importar.
Continuou guiando Taylor pelos cômodos enquanto narrava histórias longas,
fúteis, recheadas de fofocas sociais e lembranças de festas que, para ela, eram
memoráveis, ainda que para qualquer outra pessoa soassem vazias.
A casa refletia seu estilo: uma
mistura de rusticidade forçada, objetos culturais comprados mais pelo valor do
que pela história, e detalhes que gritavam tentativa de se provar. Taylor
reconhecia quase tudo: Katheryn já havia exibido boa parte daqueles espaços no
Instagram, acompanhando cada fotografia de legendas motivacionais do tipo tudo
é possível se você acreditar.
Taylor apenas fingia surpresa,
movimentando os olhos de forma teatral, enquanto a anfitriã parecia nutrir a
delusão de estar mostrando algo inédito e invejável.
Quando chegaram à sala de estar,
Katheryn informou que Rachel estava prestes a chegar para o almoço e que John
gostaria de conversar com ela. Assim que a mulher se afastou, Taylor levou a
mão ao estômago. O peso familiar da ansiedade, frio e denso, subiu-lhe à
garganta.
Uma parte dela queria correr, fugir antes que algo desse errado. Mas ela
repetia para si mesma: Você conseguiu entrar. Agora não vai recuar.
Respirou fundo.
Caminhou até a lareira, observando os
retratos alinhados na prateleira superior. Fotos de meninas em tutus, figurinos
impecáveis, sorrisos capturados no auge de suas esperanças.
Nenhuma foto mostrava o que um dia fora ela. Aquilo, por si só, era um alívio.
— São minhas alunas... — disse uma voz
atrás dela.
Taylor se virou com a calma ensaiada
de quem já tinha esperado aquele momento.
John estava ali, sorrindo com o mesmo orgulho que ostentava nas redes sociais.
— Tenho muito carinho por cada uma. —
ele continuou. — Elas representam etapas importantes da minha carreira.
Ele a convidou a se sentar. Taylor
obedeceu.
— Não sei se Katy explicou com
detalhes — disse John, pegando uma moldura da prateleira — mas eu tenho um
estúdio de balé. É… minha verdadeira paixão.
Katheryn voltou a sala de estar e completou
com um sorriso automático:
— Ele realmente é apaixonado por
ensinar.
John estendeu o retrato, mostrando a
primeira turma oficial. Falava com brilho nos olhos, explicando como tudo
mudara após aquela apresentação no Teatro Municipal, como sua carreira
disparara, como “a paixão transforma realidades”.
Taylor ouviu tudo com o rosto calmo,
mas os dedos escondidos em seu colo tremiam.
Cada palavra dele era como tocar uma cicatriz.
Quando sua fala terminou, Katheryn
retomou o assunto:
— Você ainda vai amar conhecer Rachel.
Ela é incrível. Muito dedicada, muito… intensa. Herdou isso do pai. Tem vontade
de transformar as coisas, ela realmente pensa que pode mudar o mundo e nós
acreditamos e a motivamos para isso. John disse tudo quando falou sobre paixão.
Taylor apenas assentiu e respondeu:
— Quero fazer jus à confiança que está
sendo depositada em mim.
— E irá fazer. Eu olho para você e
acredito nisso. — John. — Você tem um olhar de quem carrega paixão para seus
objetivos.
O som de um carro freando na entrada
interrompeu a conversa, Taylor ergueu o pescoço para tentar enxergar da fresta
da janela central, mas só viu uma criança correr de relance. Era Rachel.
Quando voltou sua atenção ao casal,
percebeu John observando-a atento, com um sorriso.
John se levantou.
— Venha conhecê-la. — disse, gentil.
Taylor o seguiu até a sala de jantar. Ouviu
passos apressados subindo a escada. Depois, passos voltando. Pequenos,
ansiosos.
E então Rachel apareceu.
Era diferente das fotos: mais viva,
mais real. Tinha cabelos castanhos escuros presos às pressas, bochechas
coradas, respiração acelerada — um contraste perfeito com a compostura quase
gélida dos pais.
Taylor sorriu primeiro.
A menina, tímida, devolveu o gesto.
A mesa estava posta e o almoço
começou. Salma serviu medalhões ao molho branco e arroz levíssimo. A conversa
da família fluiu sobre trivialidades — vizinhos, aulas, eventos, roupas,
viagens, mas Taylor percebia algo curioso: John sempre observava sua reação.
Não de forma invasiva, mas avaliadora.
Como se quisesse garantir que ela compreendesse a dinâmica da família, as
entrelinhas, a importância que cada detalhe tinha para Rachel.
Taylor interpretou aquilo como
exigência profissional. E enquanto a família conversava, ela registrava
mentalmente nomes, rotinas, compromissos, gostos.
A teia em torno dos Mayer começava a
se formar, fio por fio.
Após o almoço, Katheryn sugeriu que
Rachel mostrasse seu quarto — o único cômodo que Taylor ainda não havia visto.
Subiram juntas, em silêncio.
Ao abrir a porta, a menina revelou um
ambiente amplo, delicado para sua idade, inundado de referências de balé. Era
um quarto bonito, mas… melancólico.
Voltou sua atenção para Taylor e
sorriu, dizendo:
— Minha mãe me falou muito de você.
— E ela também me falou muito de você
— respondeu Taylor com sinceridade educada.
A menina entregou uma agenda colorida.
— Aqui tem tudo o que eu faço. Minha
mãe disse que é para você me ajudar.
Taylor folheou, impressionada com a
rotina.
— Você é bem... ocupada.
— É… — Rachel suspirou. — E às vezes
eu não gosto muito, mas meu pai fala que eu preciso fazer tudo isso para ser bem-sucedida
como ele e a mamãe são.
Havia uma vulnerabilidade nela, tão
clara que Taylor sentiu o peito apertar.
A conversa seguiu natural, orgânica. Rachel
mostrou suas roupas, seus livros, seu canto de leitura. Comentou que Taylor
poderia dormir ali quando ficasse tarde demais — algo dito com tanta
espontaneidade como se pedisse já sua amizade.
Taylor respondeu com cuidado,
prometendo organização, explicando suas responsabilidades, mas a menina
continuou sorrindo para ela como se colher essa amizade fosse uma missão.
Sem parecer rude, Taylor tentou
ignorar aquele sorriso gentil para não se apegar e fingiu estar lendo sua
agenda. Ao folear, chegou na data de hoje e viu como era organizado e calculado
cada horário da menina.
— Você tem compromisso daqui a pouco...
— Sim, sim. Na Emanuelly, ela é minha
amiga da escola e vai dar uma festa.
— É o aniversário dela? — Taylor
questionou.
— Na verdade, é aniversario do Bobby,
o cachorrinho dela... — Rachel respondeu, rindo.
— Cachorros celebram aniversários... —
Taylor comentou. — Bom, vamos te arrumar.
A menina sorriu, alegre. Foi até seu
guarda-roupa e mostrou parte da sua sapateira. Pegou uma sapatilha creme, com os
detalhes: orelhas de cachorros.
— Queria ir com esse aqui. — Rachel
disse.
Taylor riu, assentiu. Olhou as roupas
da garota, ajudou-a escolher uma peça e arrumou seus cabelos negros em uma
trança.
— Que bonito... — Rachel disse,
surpresa. — Nunca tinha feito tranças...
— Você é linda, Rachel. Independe do
cabelo.
E então foram juntas para o primeiro compromisso
de Rachel.
Ao voltarem da casa da amiga Emanuelly
horas mais tarde, Taylor notou novamente o olhar atento do casal. Um olhar que
ela interpretou como zelo.
Como pais que desejam acompanhar cada passo.
A primeira missão como babá havia sido
concluída. E ela não apenas sobrevivera ao primeiro dia — como conquistara
espaço.
De volta ao seu apartamento, o cheiro
de comida quente e especiarias invadia a sala.
Selena cozinhava com um sorriso, celebrando o novo emprego da amiga.
Taylor largou a bolsa no sofá e
sentou-se lentamente, ainda absorvendo o dia.
Havia tensão em seus ombros, mas também uma espécie de triunfo silencioso.
— Preciso te contar uma coisa — disse
ela, séria. — Mas você tem que prometer que não vai surtar.
Selena desligou o fogo imediatamente.
— O que houve?
Taylor engoliu o ar, como quem
mergulha antes de confessar.
A voz saiu firme, mas trincada:
— Lembra quando eu te contei sobre
meus pesadelos… sobre o anel?
— Lembro.
— Não são pesadelos, Sel. — suspirou. —
São memórias.
O silêncio encheu o ambiente.
Taylor continuou, finalmente deixando
escapar tudo o que engolira por anos:
— Quando eu era criança, fui abusada
pelo meu professor de balé. — as palavras saíram num fluxo doloroso, urgente. —
E eu o encontrei. Agora. Depois de tanto tempo.
Selena levou a mão à boca.
— Meu Deus… Taylor… Você precisa ir à
polícia!
— Não! — Taylor rebateu alto. — Não
vão acreditar em mim. Ele é influente. É amado. Admirado. Ele destruiu minha
família inteira e ninguém fez nada. Ninguém nunca fará.
Selena recuou, chocada.
Taylor, respirando com dificuldade,
segurou as mãos da amiga.
— Eu preciso que alguém saiba. Caso…
caso algo aconteça. E você é a única pessoa em quem eu confio.
E então disse o que vinha queimando
dentro dela:
— Eu vou destruir a vida dele, Selena.
Como ele destruiu a minha. Eu entrei na casa dele. E agora… eu estou perto.
Selena perdeu o ar.
— Taylor… pelo amor de Deus… isso é
perigoso…
A jovem apenas a abraçou, com força.
— Está tudo sob controle — sussurrou.
— Ele vai pagar. Finalmente.
E naquele apartamento pequeno, com
jantar esquecido no fogão e duas taças vazias na mesa, o plano de Taylor finalmente
tomava forma definitiva.
[CONTINUA]