O crime da Delancey Street | 01° Capítulo

Era uma tarde de domingo quando a jovem Selena espiou por uma fresta da janela o outro lado da rua e assistiu o IML retirar dentro da casa do vizinho um corpo já empacotado no saco preto desses que assistimos no noticiário. Estava fascinada. Reprimiu-se de tal sentimento por achar errado, mas ainda assim a deixou fascinada, pois nem nos seus maiores devaneios pensou que em um dia teria na frente de sua casa tal cena horripilante como nos filmes policiais.


— Selena, estava te chamando. Venha me ajudar a colocar a mesa. — Sua mãe a chamou.


A moça assentiu com a cabeça sem desviar o olhar da janela. Assistiu a última cena: os peritos entraram no carro e partiram. Selena suspirou e desceu as escadas atrás de sua mãe.


— O que será que aconteceu? — Selena sorriu com os pratos na mão. — Quem diria que alguém fosse capaz de machucar o sr. Tesfaye.

— Ele já era muito velho, Selena. A vizinha disse hoje cedo que ele já estava doente... deveria estar nas últimas...


Sua mãe já estava conformada com a justificativa dada, mas Selena ainda estava insatisfeita. Onde já se viu alguém morrer de velhice? Não há nenhuma emoção. Isso nunca aconteceria com Hercule Poirot ou Miss Jane Marple, seus ídolos fictícios da literatura. Até para morrer de velhice, Agatha Christie faria algo melhor.

Após arrumar a mesa, Selena subiu para tomar um banho e preparar-se para o jantar. Era a noite de ações de graça e nesse ano sua família era responsável pela ceia na vizinhança. Todos ainda estavam abalados e o único tópico de discussão era a morte do sr. Tesfaye. Os convidados lamentavam a morte morrida. Não tinha companhia, pois morava sozinho – esposa falecida e o filho único fora da cidade. Seu filho, aliás, era o grande amigo de infância de Selena, Abel, que estudava em Seattle.

Ele sempre voltava a Nova York no dia de ação de graça, mas com o recente ocorrido ninguém sabia ao certo do seu paradeiro. Escurecera rápido e Selena estava sentada na sua escrivaninha distraída e assistiu uma pessoa entrar na casa do recém-falecido sr. Tesfaye. Seria Abel? Selena pensou entusiasmada em recebê-lo e poder consolá-lo. Levantou e apressou os passos, foi impedida pela sua mãe que questionou aonde iria antes do jantar que estava prestes a ser servido.


— Abel chegou, eu acho! — Selena anunciou entusiasmada.

— Abel... já está aqui. — A mãe e convidados riram.


O rapaz estava na cozinha bebendo vinho com alguns vizinhos que ficavam em cima do rapaz como urubus aguardando detalhes sórdidos. A moça distraiu-se e correu para um quente abraço, prestou condolências e se sentou ao seu lado no sofá.


— Já estava subindo para te fazer uma surpresa... — Abel sorriu. — Mas a sra. Urie tinha algumas perguntas sobre a Itália no século XVIII. — Ambos reviraram os olhos rindo.

— Oh, ela sempre te aluga e depois se reúne com as mães do bairro no clube de livro e despeja essas informações como se entendesse muito. — Selena denunciou a vizinha e causou risada. — Vamos Abel, vamos subir. Devemos colocar a conversa em dia.


O rapaz largou a taça de vinho e seguiu Selena pelas escadas. Enquanto subiam, Selena parou alguns degraus acima e suspirou dizendo:


— Lamento muito. Deve ter sido muito difícil entrar na sua casa depois de hoje.

— Ainda não entrei. — Abel respondeu com os olhos baixos. — Seu pai me buscou no aeroporto para que eu não precisasse. Não tive coragem de fazer nada. Ainda não acredito que meu pai se foi, mesmo que ele já tivesse 82 anos e cada dia fosse um milagre... — Abel riu da própria piada. — Ainda assim, sinto que aconteceu tão de repente...

— Mas... eu... vi... achei que você... — Selena sentiu-se confusa. — Eu...

— Aconteceu alguma coisa, Sel?


A moça continuou subindo as escadas e entrou no seu quarto. Abel passou por ela e jogou-se na cama e ficou encarando o teto.


— Queria ter me despedido antes... apesar do meu pai ter sido sempre... ruim comigo. Era meu pai. — Abel balança seu corpo na cama. — Sempre pensei que isso poderia acontecer a qualquer momento, mas é difícil acreditar quando acontece mesmo.

— Alguém tinha acesso a sua casa? — Selena interrompeu-o.

— Aqui? Acho que não, éramos só nós dois. Meu pai não confiava em ninguém, nem no seu pai para levá-lo ao médico.

— Abel, eu vi alguém entrando na sua casa.

— Agora? — Abel se sentou na cama. — Tipo, agora, agora mesmo?

— Antes de descer as escadas, eu vi alguém entrando e achei que era você, mas você já estava aqui e agora eu não sei o que dizer, mas tenho certeza do que vi.

— Não eram os peritos?


Abel levantou as pressas e desceu os pares de escada correndo. Quando chegaram no piso inferior, a mãe de Selena anunciou o jantar, mas Abel saiu na frente rumo a sua casa, enquanto Selena foi impedida pela mãe para ajudar a servir o jantar.


— Já volto! Abel foi na casa dele, alguém estava lá.

— Quem? — Seu pai perguntou curioso.


Sem responder, Selena correu para alcançar Abel que já tinha entrado na antiga casa. A moça e seus pais a seguiram, os vizinhos ficaram no outro lado da rua curiosos. No escuro, Selena chamou por Abel que já revistara a casa.


— Não tem ninguém aqui. — Abel apareceu no topo da escada.

— Como assim? O que aconteceu? — O pai de Selena olhou em volta. — Está tudo bem?

— Sim, claro. — Abel respirou fundo. — Estou bem. Selena disse que alguém tinha entrado aqui mais cedo e eu quis checar, mas... não tem ninguém.

— Abel, sinto muito por isso. — A mãe de Selena abraçou-o que tentava não demostrar estar abalado. — Vamos para casa, passará a noite lá.


Todos saíram da casa, o pai de Selena ficou responsável de trancar a casa. Selena olhou para a casa e desviou o olhar ao amigo, o sorriso do rapaz desmanchou-se em segundos. Ao entrar na casa, os pais de Selena apaziguaram a situação e todos jantaram sem que a cena se tornasse notória para os convidados.

Após o jantar, Abel aceitou conversar com todos, tentou demostrar estar bem. Selena o observava de longe triste com toda a situação, a mãe de Selena a chamou na cozinha.


— Selena, o que aconteceu?


A moça respirou fundo. Sabia que dali vinha bronca. Tentou se explicar, disse o que viu e que a intenção de ambos eram checar a casa.


— Você tem certeza? Não foi você pensando em pregar uma peça, querendo criar suspense?

— Claro que não, mãe. Eu jamais brincaria com os sentimentos do meu melhor amigo.


Quase 23h, todos foram embora e a casa já estava arrumada. Selena subiu as escadas com o amigo e pegou travesseiros e um cobertor, o rapaz fez sua cama improvisada ao lado da cama de Selena. Todas as luzes da casa logo foram apagadas, estavam em silêncio. Selena fechou os olhos e suspirou algumas vezes.


— Sel, não fique mal. — Abel estendeu sua mão à amiga. — Eu teria que entrar na casa de qualquer maneira.

— Você estava tão bem e eu estraguei isso.

— Isso pode ter uma explicação. Amanhã ficou marcado de eu ir ao IML e terei as informações de tudo que aconteceu. Irei questionar isso, Sel. Pode dormir tranquila.


Selena apertou a mão de Abel e virou para o outro lado da cama buscando dormir.

Já era habitual Selena sentir insônias em algumas noites, principalmente aquelas que sentia uma grande ansiedade. Isso somou ao ronco relativamente alto de Abel, a jovem rolava na cama de um lado para o outro tentando encontrar posições melhores para dormir ou cansar até cair no sono, tanto faz a alternativa, Selena fracassou em todas. Sentou-se na sua cama e tentou meditar, sua terapeuta disse que isso poderia ajudá-la. Nada adiantou.

A moça passou por cima do amigo e foi ao banheiro, voltou. Olhou na janela com certa distância, viu movimentos.


— Abel! Abel! — Selena engrossou a voz chamando-o. — Acorde, Abel!


Jogou uma almoçada que ficava em uma poltrona próxima e o rapaz despertou assustado com o impacto da almofada e do próprio ronco. Sentou-se no colchão e esfregou os olhos.


— Corra, venha aqui! — Selena o chamou às pressas. — Tem alguém lá.


Abel atravessou o quarto de quatro e olhou por outra fresta sua casa em frente. Ele também viu. O abajur ligado dentro da casa e um corpo em movimento.


— O que estão fazendo lá?

— Não faço ideia, mas não estou louca. Ele deveria estar lá quando entramos mais cedo...

— Eu vi todos os cômodos... não tinha ninguém.

— Ele pode ter se escondido... — Selena sugeriu. — Uma pessoa que conhece bem a casa...


Inevitável, Selena abriu um sorriso. Tinha ali um verdadeiro mistério. Abel a olhou e voltou sua atenção a casa. Estava incrédulo, não sabia o que fazer. O abajur apagou, a casa voltou a ficar escura. A dupla trocou olhares e se sentaram no chão.


— Isso é perigoso, Abel. Muito perigoso. Estamos na frente do perigo.

— Eu sei, eu sei. O que faremos? — O rapaz perguntou confuso. — Quer dizer, entrei lá e não encontrei nada, a pessoa não quis me machucar naquela hora.

— Talvez ele tenha ficado receoso, éramos quatro e parece que ele está sozinho.

— O que podemos fazer? Entrar lá novamente? Ligamos para a polícia?

— Acho que sim, é o certo, não?


Os dois ficaram em silêncio e olharam outra vez. Uma pessoa sai da casa com passos apressados, a dupla assiste pela janela o corpo se distanciando pela rua.


— Agora é tarde demais para chamar a polícia.


A dupla ficou na janela de vigia por mais alguns minutos, nada mudou e a rua estava deserta. Abel bocejava algumas vezes, Selena também estava cansada. Sugeriu irem dormir, já era mais que tarde e Abel tinha que ir ao IML logo pela manhã.

Os dois se deitaram novamente, não falaram mais nada. Cada um perdido em suas teorias, medos e imaginações. Da Selena, é claro, ia sempre mais longe. O entusiasmo era menor que o medo que sentia de toda aquela situação. Hercule Poirot e Miss Marple jamais sentiriam medo disso, pelo menos, não como Selena.

A garota logo adormeceu também.

O relógio de pulso de Abel logo despertou. Selena despertou com a sensação de que tinha dormido por três ou quatro minutos. Ela virou para o lado oposto da cama e tentou dormir, Abel se sentou na cama e a cutucou.


— Você vai comigo hoje? — Perguntou com a voz cansada.

— Agora?

— Precisamos denunciar o que vimos ontem. E você viu muito mais do que eu.


Selena se sentou e concordou. Foi na frente para se arrumar, em seguida, Abel tomou seu banho e vestiu a mesma roupa, não queria ir até sua casa trocar. Tomaram um breve café em silêncio, combinaram mais cedo de não falar nada até conversar com a polícia.


— Irei sair logo, logo. Aceitam carona? — Pai de Selena ofereceu.

— Oh, não... — Selena sorriu. — Pegaremos o metrô perto. Obrigada, pai.


Abriu a porta principal e encararam com temor a casa do sr. Tesfaye no outro lado da rua, Selena sentiu calafrios ao lembrar do que vira na noite passada, olhou para Abel que sequer piscava ao olhar para sua casa. Selena respirou fundo, buscou coragem e puxou Abel pela mão para caminhar sentido a estação de metrô que ficava há duas quadras dali.


— Precisamos ser inteligentes. — Selena sorriu. — Pensei que não entraremos lá atoa, também nem devemos permitir que meus pais entrem, pois não podemos comprometer o espaço, se realmente for uma cena de crime.


Selena voltara a ficar entusiasmada com o assunto, citou as possibilidades de ter fios de cabelo, DNA ou algo que pudesse identificar o invasor da noite passada, usou alguns termos cientificados que confundia seu amigo que nada entendia disso. Ela criava algumas teorias do que aconteceu e como isso encaixaria em homicídio doloso, entretanto, Selena não soube dizer o porquê.

Em um momento da viagem, a moça se calou, pois Abel já não soube disfarçar que prestava atenção no que Selena dizia. Ficou introspectivo em seus pensamentos, talvez não tenha absorvido a notícia tão bem quanto pensou no dia anterior.

Ao chegarem no IML, Abel foi orientado e direcionado por um funcionário aos procedimentos de reconhecimento e da papelada. A parte mais difícil foi vê-lo morto, seu pai que nunca esteve nessa posição tão silenciosa quando estava no mesmo ambiente que o filho, a hierarquia invertida, pois, dessa vez, Abel estava por cima somente pelo simples fato de estar vivo e o sr. Tesfaye não.

Não esboçou nenhuma reação, confirmou que era seu pai e assinou os documentos necessários para começar a planejar o funeral. Enquanto conversava com um funcionário, o telefone de Abel tocou. O número era desconhecido por ele, mas não hesitou.


— Alô? — disse ao aceitar a ligação.

— Sr. Abel Tesfaye? Sou Milles Woods, o advogado do falecido Sr. Tesfaye. Sou em frente à casa para conversar com o senhor sobre a leitura do testamento.

— Testamento? — Abel riu indignado. — Sou o único filho do meu pai.

— É claro, mas ainda assim o sr. Tesfaye fez um testamento e preciso lê-lo para você.

— Tudo bem... Estou a caminho.


Desligou o telefone, respirou fundo e olhou para Selena.


— Meu pai fez um testamento sendo que eu... eu sou o único herdeiro.


[CONTINUA]

2 comentários:

  1. Oi, Mirela!
    Será que a pessoa que entrou na casa foi o advogado? É a única personagem aí que apareceu e trouxe a notícia sobre o testamento.

    Quero o segundo capítulo logo, fiquei curiosa!

    Boa Páscoa!

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    Respostas
    1. Oi, Silvia.
      Veremos o que vai acontecer nos próximos capítulos sobre esse testamento.

      Espero que tenha dito uma boa páscoa.
      Abraços,
      Mirela.

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